CAMINHOS DE CLARICE


SOSHA
por
Quando li "A paixão segundo G.H.", livro de Clarice Lispector lançado em 1964, tive uma sensação estranha de enfrentamento com a obra, como se a autora não estivesse disposta a me conduzir pela narrativa, mas deliberadamente estivesse ali para provocar, para abrir um turbilhão de voltas e voltas que me deixavam cada vez mais confuso e furioso. Eu me sentia na obrigação de responder, de perguntar, de interpelar riscando as folhas, o que tornou o livro um amontoado de garranchos. Foi interessante perceber durante as nossas trocas, que Sosha em diversos momentos expressou um sentimento semelhante em relação à autora, um ímpeto que transitava entre a empolgação e a manifestação, por vezes traduzido num longo processo de idas e vindas nas telas. Como se fosse impossível chegar a um fim único, diante das tantas encruzilhadas colocadas pelas trajetórias de vida e de linguagens artísticas dos dois.

Como resultado dessa teia de diálogos, propomos aqui a exposição virtual “Caminhos de Clarice”, composta inicialmente por dez pinturas inéditas produzidas pelo multiartista recifense Sosha. A ideia basicamente é contar um pouco da história da escritora Clarice Lispector, dialogando também com seus universos poéticos e ficcionais, cristalizando momentos e relações através de pinturas em técnicas mistas, combinando tintas guache, acrílica, aquarela, lápis grafite e canetas polska. Trata-se de uma homenagem, mas também de uma livre interpretação de Sosha, que nos últimos meses, durante um dos períodos mais complicados e mortais da pandemia da covid-19 no Brasil, mergulhou de cabeça na vida e obra de Clarice – uma de nossas escritoras mais importantes que completou 100 anos de seu nascimento no dia 10 de dezembro de 2020. Sagitariana como Sosha.

A inspiração para as telas perpassa a imigração, a infância e adolescência no Recife, as primeiras incursões literárias, a ida para o Rio de Janeiro, a amizade e paixão platônica pelo amigo gay Lúcio Cardoso, a relação com o filho, os dilemas envolvendo saúde mental, a solidão durante as estadias fora do país e, claro, as suas obras em contos, crônicas, livros, depoimentos e entrevistas. Trata-se de um encontro de linguagens e poéticas distantes no tempo, mas que estabelece cruzamentos possíveis entre a literatura e as artes visuais. Isto é, uma investida pessoal de Sosha em adentrar um complexo universo criativo, apostando em telas que partem de um repertório expressionista, pop, fashion e dândi típico de sua estética para encontrar no rosto profundo de Clarice e de Lúcio sua grande inspiração. Pela primeira vez em sua carreira, o artista experimenta aqui a abstração numa releitura da famosa crônica da autora sobre Mineirinho.

Além das 10 obras, a exposição conta com uma conversa entre curador e artista, assim como um mapa de processos, com vídeos, anotações, esboços, trechos de obras, performances e croquis produzidos com ferramentas digitais, complementado pela impactante última entrevista dada por Clarice Lispector na TV Cultura em 1977. Tudo isso podendo ser acompanhado pela PLAYLIST feita especialmente por Sosha, com um apanhado do que estava escutando durante a produção das telas. Aproveitem!

Rodrigo Almeida - Curador
Antes do aparecimento do espelho, a pessoa não conhecia o próprio rosto senão refletido nas águas de um lago. Depois de um certo tempo cada um é responsável pela cara que tem. Vou olhar agora a minha. É um rosto nu. E quando penso que inexiste um igual ao meu no mundo, fico de susto alegre. Nem nunca haverá. Nunca é o impossível. Gosto de nunca. Também gosto de sempre. Que há entre nunca e sempre que os liga tão indiretamente e intimamente?

Clarice Lispector em "Água Viva"