CAMINHOS DE CLARICE


SOSHA
por
Diante da tela, pensar e esboçar, pintar uma, duas, dez vezes, pintar por cima, tracejar, chapar, fazer e refazer, compor, sobrepor, construir e reconstruir camadas sobre camadas. Encontrar um caminho, ler, anotar, se perder, desistir, retomar, insistir, finalizar. Compartilhamos aqui um pouco dos processos de criação e inspiração de Sosha, acompanhados por escritos de Clarice Lispector selecionados pelo artista e curador, assim como pela última entrevista da autora para a TV Cultural em 1977.
"Vi no seu rosto a pequena convulsão de um conflito, o mal-estar de não entender o que se sente, o de precisar trair sensações contraditórias por não saber como harmonizá-las"
"Sim, minha força está na solidão. Não tenho medo nem de chuvas tempestivas nem das grandes ventanias soltas, pois eu também sou o escuro da noite"
"Quero escrever-te como quem aprende. Fotografo cada instante, aprofundo as palavras como se pintasse, mais do que um objeto, a sua sombra"
"Atrás do pensamento não há palavras: é-se. Minha pintura não tem palavras: fica atrás do pensamento. Nesse terreno do é-se sou puro êxtase cristalino. É-se. Sou-me. Tu te és"
"Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina — porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro"
"Por enquanto preciso segurar esta tua mão - mesmo que não consiga inventar teu rosto e teus olhos e tua boca. Mas embora decepada, esta mão não me assusta. A invenção dela vem de tal ideia de amor como se a mão estivesse realmente ligada a um corpo que, se não vejo, é por incapacidade de amar mais. Não estou à altura de imaginar uma pessoa inteira porque não sou uma pessoa inteira. E como imaginar um rosto se não sei de que expressão de rosto preciso? Logo que puder dispensar tua mão quente, irei sozinha e com horror.

Embora eu saiba que o horror – o horror sou eu diante das coisas"
"Olhava de relance o rosto fotografado e, por um segundo, naquele rosto inexpressivo o mundo me olhava de volta também inexpressivo. Este - apenas esse - foi o meu maior contato comigo mesma? O maior aprofundamento mudo a que cheguei, minha ligação mais cega e direta com o mundo"
"E não era um rosto. Era uma máscara. Uma máscara de escafandrista. Aquela gema preciosa ferruginosa. Os dois olhos eram vivos como dois ovários. Ela me olhava com a fertilidade cega de seu olhar. Ela fertilizava a minha fertilidade morta. Seriam salgados os seus olhos? Se eu os tocasse - já que cada vez mais imunda eu gradualmente ficava - se eu os tocasse com a boca, eu os sentiria salgados?"
"Eu, que tinha como meu tema secreto o inexpressivo. Um rosto inexpressivo me fascinava; o momento que não era clímax me atraía. A natureza, o que eu gostava na natureza, era o seu inexpressivo vibrante"
"Quando eu ficava sozinha não havia uma queda, havia apenas um grau a menos daquilo que eu era com os outros, e isso sempre foi a minha naturalidade e a minha saúde. E a minha espécie de beleza. Só meus retratos é que fotografavam um abismo? Um abismo"
"Vida e morte foram minhas, e eu fui monstruosa. Minha coragem foi a de um sonâmbulo que simplesmente vai. Durante as horas de perdição tive a coragem de não compor nem organizar. E, sobretudo a de não prever. Até então eu não tivera a coragem de me deixar guiar pelo que não conheço e em direção ao que não conheço: minhas previsões condicionavam de antemão o que eu veria. Não eram as antevisões da visão: já tinham o tamanho de meus cuidados. Minhas previsões me fechavam o mundo"